Linguagem, leitura, texto, sujeito e
sentido[1]
CONCEPÇÃO DE LEITURA
Ouve-se com frequência – e também falamos – sobre a
necessidade de se cultivar o hábito da leitura, especialmente entre crianças e
jovens, e sobre o papel da escola na formação de leitores competentes. Mas,
afinal, o que é ler? Para que ler? Como ler? As respostas a essas perguntas
podem revelar uma concepção de leitura decorrente da concepção de linguagem,
que pervade e/ou determina as noções de sujeito, de língua, de texto e de
sentido.
Vejamos três maneiras de se conceber a linguagem e demais
noções, a partir das possíveis respostas acerca do ato de ler.
FOCO NO AUTOR
A primeira apresenta uma
concepção de língua como representação do pensamento, que corresponde à de
sujeito psicológico, individual, dono de sua vontade e de suas ações. Ela
ilumina os estudos tradicionais.
Nessa concepção, o texto é visto
como um produto – lógico – do pensamento do autor, nada mais cabendo ao leitor
senão captar essa representação mental e as intenções psicológicas do produtor.
Por conta disso, o leitor possui um papel passivo.
A leitura, assim, é entendida
como atividade de captação das ideias do autor, sem levar em conta as
experiências e os conhecimentos do leitor.
FOCO NO TEXTO
Já a concepção de língua como
estrutura (código), corresponde à de sujeito determinado, “assujeitado” pelo
sistema, marcado pela “não consciência”.
Nessa concepção de língua como
código, o texto é visto como simples produto da codificação de um emissor a ser
decodificado pelo leitor/ouvinte. Ela influencia os livros didáticos e a teoria
da comunicação.
Consequentemente, a leitura é mecânica,
uma atividade que exige do leitor foco no texto, em sua linearidade, uma vez
que “tudo está dito no dito”. Cabe ao leitor apenas reconhecer o sentido das
palavras, regras gramaticais e estruturas do texto.
FOCO NA INTERAÇÃO AUTOR-TEXTO-LEITOR
Diferentemente das concepções
anteriores, na concepção interacional (dialógica) da língua, os sujeitos são
vistos como atores/construtores sociais. São sujeitos ativos que –
dialogicamente – se constroem e são construídos no texto.
Desse modo, há lugar, no texto, para toda uma gama de
implícitos, dos mais variados tipos, detectáveis quando se tem o contexto
sociocognitivo dos participantes da interação.
Nela, o sentido é construído na
interação texto-sujeito. E a leitura é uma atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos. Ela requer a mobilização de um vasto conjunto
de saberes no interior do evento comunicativo.
A discussão aqui proposta
procurará se situar no interior da terceira concepção de linguagem. A título de
ilustração do que acabamos de afirmar, vejamos a tirinha a seguir:
Fonte: Folha de S. Paulo, 13 de abr. 2005
Na tirinha, Garfield representa
bem o papel do leitor que, em interação com o texto, constrói-lhe o sentido,
considerando não só as informações explicitamente constituídas, como também o
que é implicitamente sugerido.
Isso é uma
clara demonstração de que:
i – a leitura
é uma atividade na qual se leva em conta as experiências e os conhecimentos do
leitor;
ii – a
leitura exige do leitor bem mais que o conhecimento do código linguístico.
A INTERAÇÃO AUTOR-TEXTO-LEITOR
Nas considerações anteriores,
explicitamos a concepção de leitura como uma atividade de produção de sentido.
Vejamos agora um trecho sobre leitura, retirado do documento (PCN) que orienta
a matriz de referência do ENEM:
A leitura é o processo no qual o
leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a
partir de seus objetivos, de seus conhecimentos sobre o assunto, sobre o autor,
de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação,
decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade
que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem
as quais não é possível proficiência.
Como vemos nesse trecho,
encontra-se reforçado o papel do leitor enquanto construtor de sentido,
utilizando-se de estratégias como seleção, antecipação, inferência e
verificação.
Desse leitor, espera-se que
processe, critique, contradiga ou avalie a informação que tem diante de si, que
a desfrute ou a rechace, que dê sentido
e significado ao que lê.
A título de exemplificação,
vamos simular como nós, leitores, recorremos a uma série de estratégias no
trabalho de construção do sentido. Para o nosso propósito, selecionamos o
miniconto intitulado O retorno do Patinho
Feio, de Marcelo Coelho.
O Retorno do Patinho
Feio
Alfonso era o mais belo cisne do lago
de Astúrias. Todos os dias, ele contemplava sua imagem refletida nas águas
daquele chiquérrimo e exclusivo condomínio para aves milionárias. Mas Alfonso
não se esquecia de sua origem humilde.
- Pensar que, não faz muito tempo, eu era
conhecido como o Patinho Feio...
Um dia, ele
sentiu saudades da mãe, dos irmãos e dos amiguinhos da escola.
Voou até a
lagoa do Quaquenhá. O pequeno e barrento local de sua infância. A pata Quitéria
conversava com as amigas chocando sua quadragésima ninhada. Alfonso abriu suas
largas asas brancas.
- Mamãe! Mamãe! Você se lembra de
mim?
Quitéria levantou-se muito espantada.
- Se-se-senhor cisne...quanta honra...mas
creio que o senhor se confunde...
- Mamãe...?
- Como poderia eu ser mãe de tão belo e
nobre animal?
Não adiantou explicar. Dona
Quitéria balançava a cabeça.
- Este cisne é mesmo lindo...mas doido de
pedra, coitado...
Alfonso foi então procurar a
Bianca. Uma patinha linda do pré-primário. Que vivia chamando Alfonso de feio.
- Lembra de mim, Bianca? Gostaria
de me namorar agora? He, he, he...
- Deus me livre! Está louco? Uma
pata namorando um cisne! Aberração da natureza...
Alfonso respirou fundo. Nada mais
fazia sentido por ali. Resolveu procurar um famoso bruxo da região.
Com alguns passes mágicos, o
feiticeiro e astrólogo Omar Rhekko resolveu o problema. Em poucos dias, Alfonso
transformou-se num pato adulto. Gorducho e bastante sem graça. Dona Quitéria
capricha fazendo lasanhas para ele.
- Cuidado para não engordar demais,
filhinho.
Bianca fez um cafuné na cabeça de Alfonso.
- Gordo... pescoçudo... bicudo... Mas
sabe que eu acho você uma gracinha?
Viveram felizes para sempre.
COELHO, Marcelo.
"O Retorno do Patinho Feio". Folha de São Paulo, 19 mar. 2005. Follhinha,
p. 8.
Atividades
1.
Diferentemente do texto escrito, que em geral compele os leitores a lerem numa
onda linear – da esquerda para a direita e de cima para baixo, na página
impressa – hipertextos encorajam os leitores a moverem-se de um bloco de texto
a outro, rapidamente e não sequencialmente. Considerando que o hipertexto
oferece uma multiplicidade de caminhos a seguir, podendo ainda o leitor
incorporar seus caminhos e suas decisões como novos caminhos, inserindo
informações novas, o leitor-navegador passa a ter um papel mais ativo e uma
oportunidade diferente da de um leitor de texto impresso.
Dificilmente
dois leitores de hipertextos farão os mesmos caminhos e tomarão as mesmas
decisões.
MARCUSCHI, L. A. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio:
Lucerna, 2007.
No que diz
respeito à relação entre o hipertexto e o conhecimento por ele produzido, o
texto apresentado deixa claro que o hipertexto muda a noção tradicional de
autoria, porque
a) é o leitor
que constrói a versão final do texto.
b) o autor
detém o controle absoluto do que escreve.
c) aclara os
limites entre o leitor e o autor.
d) propicia
um evento textual-interativo em que apenas o autor é ativo.
e) só o autor
conhece o que eletronicamente se dispõe para o leitor.
2.
Infere-se que
a crítica apresentada na charge reside na ideia de que
a) as sacolas
biodegradáveis são necessárias a qualquer custo na sociedade moderna, pois
promovem o equilíbrio ambiental.
b) há o
“culto” aos produtos biodegradáveis, mesmo que agressões à natureza sejam
necessárias a fim de obtê-los.
c) árvores
são essenciais na produção de produtos biodegradáveis, que devem ser
obtidos a qualquer custo.
d) a natureza
é quem menos sofre com o advento de inovações da revolução industrial,
fomentadora de processos essenciais à sociedade.
e) o ser
humano procura equilibrar os conceitos de consumo e exploração da
natureza, a fim de manter o bem estar coletivo.
3. Banksy é o
pseudônimo de um grafiteiro, pintor, ativista político e diretor de cinema
inglês. Sua arte de rua satírica e subversiva combina humor negro e
grafite feito com uma distinta técnica de estêncil. Seus trabalhos de
comentários sociais e políticos podem ser encontrados em ruas, muros
e pontes de cidades por todo o mundo.
O trabalho de Banksy nasceu da cena alternativa de
Bristol e envolveu colaborações de outros artistas e músicos. De
acordo com o designer gráfico e autor Tristan Manco, Banksy nasceu em
1974 em Bristol, Inglaterra, onde também foi criado. Filho de um técnico
de fotocopiadora, começou como açougueiro, mas se envolveu com grafite
durante o grande boom de aerossol em Bristol, no fim da década de 1980.
Observadores notaram que seu estilo é muito similar ao de Blek le Rat,
que começou a trabalhar com estênceis em 1981, em Paris, e à campanha
de grafite feita pela banda anarcopunk Crass, no sistema de tubulação de
Londres, no fim da década de 1970.
Tomando como
base o grafite apresentado, nota-se que Banksy tentou promover um conceito
de
a) opressão
desmedida.
b) inversão
de circunstância.
c) anulação
da humanidade.
d) infância
roubada.
e) crise de
consumismo.
4. Leitura, escrita e internet
Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no
Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro na última década, o Brasil saltou de
26 para 66,5 milhões de leitores no que diz respeito a livros impressos. Esses
números por si só já desfazem qualquer “má” influência da internet sobre os
hábitos de leitura do brasileiro.
— A internet não deve ser vista como algo
negativo, pois amplia nossas possibilidades de leitura. É claro que é preciso
um olhar crítico, e este é o papel do educador, o de orientar a busca, seleção
e gerenciamento das informações que estão disponíveis na rede — afirma Valéria
Caratti, consultora do portal Planeta Educação.
Não só a leitura como também a escrita
foram favorecidas pela explosão da comunicação na internet observada na última
década, que proporcionou um contato maior das pessoas com atividades que envolvam a escrita – como
deixar um recado na página de um amigo, escrever um e-mail ou postar textos num
blog. Também é inegável que sites de relacionamento – como Orkut, Twitter e
Facebook, só para citar os mais conhecidos – tornaram o ato de escrever mais
banal e cotidiano, sem nenhum prejuízo nisto, uma vez que a escrita elaborada
deixou de ser algo exclusivo de escritores e das atividades escolares.
Disponível em:
<http://revistalingua.uol.com.br/textos/64/artigo249031-1.asp>. Acesso em: 29 nov. 2012.
De acordo com
a matéria da revista Língua Portuguesa, as redes sociais
a) são as
responsáveis pelo aumento de cinquenta por cento do número de leitores na
última década.
b)
disponibilizaram novas práticas de alfabetização e letramento, maximizando o
papel da internet no cotidiano.
c)
modificaram os conteúdos científicos e alteraram de maneira significativa o
papel do educador na sala de aula.
d)
banalizaram a escrita e impediram a disseminação de textos elaborados na
internet.
e)
democratizaram a informação, ampliaram as possibilidades de leitura e
minimizaram a disseminação da escrita.
5. O analista de Bagé 2
Contam que outra vez um casal pediu para
consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito
ortodoxo.
— Quem gosta de aglomeramento é mosca em
bicheira... Mas acabou concordando.
— Se abanquem, se abanquem no más. Mas que
parelha buenacha, tchê! Qual é o causo?
— Bem – disse o homem – é que nós tivemos
um desentendimento...
— Mas tu também é um bagual. Tu não sabe
que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?
Disponível em: <http://phaleixo.blogspot.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2013.
No texto, o
autor desenvolve além de uma reflexão literária, uma outra sobre a língua
portuguesa. Com base nesta, pode-se inferir que ele
a) faz uso da
diversidade linguística brasileira para definir a psicologia de suas
personagens.
b) se
apropria da oralidade para mostrar quão terrível é a desobediência à norma
culta.
c) demonstra
que o desrespeito ao padrão normativo da língua ocasiona ausência de coerência.
d) aponta os
estrangeirismos da fronteira como empecilhos para o ato comunicativo.
e) defende
uma visão homogênea de língua calcada na obediência aos padrões cultos.
6. Áreas do
conhecimento como a sociolinguística concebem a língua no seio da interação
social, que muda e varia em função do contexto sócio-histórico, trazendo para a
ordem do dia a questão da variação linguística. Ou seja, para a
sociolinguística, a língua sofre influência de fatores sociais e históricos que
causam a variação, seja dentro de um mesmo idioma ou entre diferentes línguas.
Diante disso, a escola não pode se furtar, como fez por muito tempo, a
reconhecer essa realidade tangível da língua, pois as investigações sociolinguísticas
puseram a nu a absoluta falta de base empírica e teórica para uma pedagogia
linguística centrada na velha noção de erro e firmada apenas no ensino da
gramática normativa. Acredito no que Bagno (2002) propõe ao defender que o
ensino de língua na escola deve propiciar condições para uma educação
linguística plena – conceito que difere da prática tradicional de inculcação de
uma suposta “norma culta” e de uma metalinguagem tradicional de análise da
gramática que pouco faz para a formação de um
aluno capaz de fazê-lo pesquisar e pensar criticamente sobre sua própria
língua. Este trabalho é uma
reflexão sobre a
necessidade de um
ensino de língua portuguesa crítico-reflexivo e transformador
e que supere práticas pedagógicas que pouco têm contribuído para uma educação
linguística para além da gramática.
Disponível em:
<http://epealufal.com.br>.
Estudos
contemporâneos mostram que a sociolinguística vem transformando a realidade da
sala de aula brasileira. A partir da leitura do texto, pode-se depreender que
a) é
desimportante se aprender a respeito da heterogeneidade linguística na escola,
pois esse conteúdo atrapalha a consolidação das normas gramaticais.
b) o ensino
de língua na escola deveria propiciar condições para o desenvolvimento pleno de
uma educação linguística calcada na homogeneidade da língua.
c) a
sociolinguística vai de encontro a uma prática tradicional de inculcação de uma
suposta norma culta e de uma metalinguagem tradicional de análise da gramática.
d) é
necessário democratizar o ensino escolar, tornando-o aberto para as múltiplas
variedades linguísticas (sociais, regionais, profissionais, etárias) que
somente algumas línguas possuem.
e) é preciso
pulverizar a qualquer custo a norma culta, fazendo o aluno competente em
reconhecer os diversos usos da língua.
7. Preconceito linguístico
Marcos Bagno começa por dizer que “tratar
da língua é tratar de um tema político”. Explica: “Só existe língua se houver
seres humanos que a falem. O homem é um animal político (Aristóteles), portanto,
a linguística é uma atividade científica essencialmente politizada”. E é
exatamente isso, politizar a linguística, o que vem fazendo o escritor Marcos
Bagno, um militante, a seu modo, das causas sociais.
Ao partir do princípio de que a língua é viva,
o autor conclui que tudo aquilo que se contrapõe a esta condição está morto.
Por isso, a gramática e os gramáticos tradicionais são considerados por ele
como “uma grande poça de água parada, um charco, um brejo, um igapó, à margem
da língua”.
A língua é como um rio que se renova,
enquanto a água do igapó, a gramática normativa, envelhece, não gera vida nova
a não ser que venham as inundações. Com estas imagens, Marcos Bagno constrói a
diferença entre a dinâmica da língua/rio e o apego às normas/igapó da língua
culta que são guardadas, preservadas, e divulgadas de maneira conservadora,
preconceituosa e prejudicial à vida social.
Eliane Doege
Finardi
Disponível em:
<http://www.pedagogiaaopedaletra.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2013.
(adaptado)
Com base na
leitura, pode-se destacar que na visão de Marcos Bagno
a) a
gramática normativa deveria ser abolida do ensino de língua portuguesa nas
escolas brasileiras.
b) o ensino
de gramática no Brasil visa a redução do preconceito linguístico, pois é
inclusivo.
c) a língua é
um instrumento político capaz de abrigar em seu âmago intensas discussões
filosóficas.
d) a língua,
assim como a filosofia, é uma matéria desprovida de rigor científico e
metodológico.
e) a redução
do preconceito linguístico só acontecerá quando a gramática normativa for
democratizada.
8. Entre ideia e tecnologia
O grande conceito por trás do Museu da
Língua é apresentar o idioma como algo vivo e fundamental para o entendimento
do que é ser brasileiro. Se nada nos define com clareza, a forma como falamos o
português nas mais diversas situações cotidianas é talvez a melhor expressão da
brasilidade.
SCARDOVELI, E. Revista Língua
Portuguesa. São Paulo: Segmento, Ano II, nº 6, 2006.
O texto
propõe uma reflexão acerca da língua portuguesa, ressaltando para o leitor a
a)
inauguração do museu e o grande investimento em cultura no país.
b)
importância da língua para a construção da identidade nacional.
c)
afetividade tão comum ao brasileiro, retratada através da língua.
d) relação
entre o idioma e as políticas públicas na área de cultura.
e)
diversidade étnica e linguística existente no território nacional.
[1]
Fonte: Ler e compreender: os sentidos do texto / Ingedore Villaça Koch e Vanda
Maria Elias. 3 ed., São Paulo: Contexto, 2012. e O texto na sala de aula / João Wanderley Geraldi (org). 4. ed., São Paulo: Ática, 2006.
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ABBBA-CCB
ResponderExcluirEsse é o gabarito?
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