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sexta-feira, 5 de maio de 2017

CRÔNICA - Para de guardar caixão (Anderson Damasceno)

Era uma vez, uma crônica. Aquela caminhada até a parada de ônibus. Atravessando o Bairro Bom Planalto até chegar à Avenida Antônio Vilhena, no Bairro Liberdade, pois todos sabem que esperar o buzu na Av. Boa Esperança demora de com força.
É noite de sexta-feira. E eu indo professorar. Duas aulas sobre linguagem mista - texto publicitário e HQs.
Foi nessa passada que ouvi, de algum lugar no escuro, na sombra que a luz do poste produz entre o muro de uma casa e outra, a voz de uma criança gritando: "Para de guardar caixão".
E foi essa fala encabulada que me chamou a atenção. Tirou-me daquilo que eu fazia.
Eu caminhava quase perto da calçada no lado esquerdo da rua. Andando como quem olha pro chão. Na verdade reparava a escória que foi disposta na via. Era a travessa Nsa. Sra. da Conceição ou Aparecida... Não recordo. Conhecida também como rota do Recanto Azul. Lugar de "gente fina" como o DJ James, meu amigo, e que tempo faz a gente precisa bater um papo a respeito dos qualés da vida.
Sentia ainda o desagrado de andar a pés sobre ela. Pior seria se tivesse lama e a Travessa estivesse intragável com aquele lamaçal mizeravi.
A gurizada aparentava algo entre 8 ou 9 anos. Brincavam algo que é a mistura de um pic-esconde com pega-pega. Desculpa se não foi possível entender bem qual é o passatempo ali. Mas até agora é só assim que consigo rotular aquela brincosa ação noturna.
O garotinho que gritou num tom que vai da chateação à cobrança de coragem, se dirigia a outro menino no meio da rua. Este estava no centro da rua  ao lado de uma garrafa pet, no vulgo molde de refri de dois litros. Tudo indicava que ele era tanto o guardião quanto o caçador nesse ponto do jogo.
Enquanto eu avançava os passos, num repente de velocidade, uma garotinha saiu às pressas, correndo em direção à garrafa. Olhei para trás no canto de olho - usando a visão periférica que só não chamo de involuntária porque a curiosidade era minha mesmo - e percebi que o moleque tinha parado de guardar caixão e avançara em direção ao coleguinha que se esgoelou no início.
No entanto, foi inútil o avanço da pixote. Ele sacou a avançada e pegou a garrafa, batendo-a em seguida ao chão, falando com força o nome da menininha. Acredito que esse era o ritual que indicou algo do tipo: "Você foi pega!".
O outro colega também tentou. Foi inútil. Também foi pego pelo caçador.
Eras, meninada! Que raio de brincadeira é essa?
Moral da estória, quem guarda caixão, pode ser que os outros não gostem não, mas pelos menos, foi o sabichão.

4 comentários:

  1. Agradeço! Parabéns pelo tempo de leitura! Isso é um tesouro que carrega-se consigo e com os outros. Abraço!

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  2. Bom texto, meu amigo.Gostei da linguagem adotada, especialmente pelo uso de termos e expressões pouco habituais ou que são utilizados de forma bastante particular por determinados grupos de falantes: "buzu", "de com força", "professorar", "qualés da vida". Ressalte-se ainda que sua prodigalidade com os detalhes enriqueceu sobremaneira sua crônica. Parabéns!

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