A condição de indigência
social é dada a pessoas com base em sua qualidade de vida. Fica mais fácil dizer
que elas não tem qualidade nenhuma. Falta sustentação alguma pra viverem
descentemente. Sem moradia, privados de alimentação saudável, desempregados,
abandonados pela família... e não poucas possuem o quadro de addicts (viciados).
Não vou entrar aqui no “mérito”
que a maioria das pessoas dá aos vícios nocivos à saúde física e mental.
Afinal, fica muito fácil afirmar que o alcoolismo empobreceu, adoeceu e matou
um indivíduo. Ou mesmo, apontar que a prostituição perverteu, enfermou e
escravizou uma jovem.
Existem outros absurdos que
deviam nos estarrecer. Mas, tem gente interessada que as drogas lícitas e
promiscuidade autodegradante não aterrorizem ninguém.
Dizer que fulano foi morto
como indigente não choca mais as pessoas. Como que isso é possível? Ninguém
nasce das pedras. Faz quase dois séculos que a teoria da abiogênese foi
banida. Contudo, os cemitérios representam a linha de chegada de muitos
indigentes.
É verdade que os jornais
mostram casos piores de indigência social. Todavia, nada se compara com andar
em cada bairro da própria cidade e avistar um, outro, outros, muitos e centenas
juntos. Todos candidatos àquela linha de chegada.
Gente não dá em árvore. Mas
milhares estão apodrecendo no cotidiano de nossas cidades. Bolsões de famílias
tentando adiar um pouquinho só a morte.
Mendigos, marginais, molambos
são muitos os rótulos. Geralmente essas pessoas ocupam a classe dos miseráveis.
E, sem sombra de dúvidas, o fator que determina nessa classificação é a realidade
financeira de cada uma delas. Tão normal medir as pessoas pelo bolso que parece
ser única balança da vida.
Só que essa é uma maneira
muito rasteira de se conceber a vida. Digo, o jeito que enxergamos a indigência
social deixa de fora outros fatores. É a partir daqui que todas as pessoas se
tornam criminosas. À cumplicidade estampada na nossa cara fizemos o favor de
pôr na nuca. Assim, olhando-nos face a face não vemos a pena que nos cabe.
Porém, basta alguém se virar
e o dolo ali está. Todos nós olhamos nossos amigos cidadãos pelas costas e nem
hesitamos em apontá-los como responsáveis. Julgar e se isentar! Condená-los como
culpados. Afinal, ninguém enxerga a própria nuca. E desse jeito sempre vai ser
papel dos outros recuperarem os miseráveis.
Sim, são milhares de pessoas
submetidas à miserabilidade. Mas, até que ponto elas são responsáveis por
tamanha degradação de si próprios?
Nossa sociedade – e vale
dizer que não é só a brasileira – herdou um histórico de injustiças contra os
mais fracos e indefesos. E olha que estes eram a maioria. O problema é que nem
tudo ficou no passado. Ainda existem águas passadas derrubando moinhos feitos
de carne e osso de gente.
Há forças e estruturas que
pertencem a ideologias que produzem seus próprios pobres amaldiçoados. Fábricas
de miseráveis! Que, cedo ou tarde, exterminam. Basta ouvir o papo de dois
coveiros, como o fez João Cabral de Melo Neto, e compreender a condição dessa
gente. “É a gente dos enterros gratuitos / e dos defuntos ininterruptos”.
Isso tudo não antes de
abusá-los, sugar-lhes a última gota de vitalidade capaz de ser convertida em
bens materiais – ou qualquer produto enlatado, que resulte em mais do capital
que está na mão de nossos líderes políticos e empresários.
As forças de marginalização de
certos segmentos sociais não podem ser descartadas. É direito da maioria lutar
contra elas. Há reflexos delas em todos e tantos quantos forem os espaços em
que as pessoas se relacionam. Nuns mais, noutros menos. O importante é
identificarmos o alicerce dessa tendência de marginalização. E daí, partirmos
para o contraextermínio.
Há reflexos dentro das
famílias, das escolas, das igrejas, das universidades, dos partidos políticos,
das empresas, das ONGs... nos bairros, nos bares, nas praças. Em todo lugar,
pelo menos a apatia acerca da condição de vida daqueles que padecem privação
aumenta. Se prolifera qual virose.
Atualmente, o jornalista
Leandro Narloch tem colocado até grandes personalidades da história brasileira
– como Luis Carlos Prestes e Zumbi dos Palmares – na coluna não só de apáticos,
mas de vilões. E bem contraditórios.
Agora, o que é que mais
causa essa asfixia social? Como dizia Victor Hugo ainda no século XIX, é o
nosso sistema de leis e práticas sociais contraditórias. Contraditórias porque
permitem o assalto aos direitos básicos do ser humano.
Ele dizia que enquanto
houver leis e costumes que eliminam certos tipos de pessoas – o que hoje em dia
chamamos de segmentos sociais –, forçando em plena civilização a existência de
verdadeiros infernos, o destino que deveria ser divino pra essas pessoas nunca
será alcançado.
Hugo entendia que eram três
os maiores problemas da humanidade. Se resumiam, primeiramente, na degradação
do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da
criança pela ignorância. Se não forem resolvidos, o assalto continuará.
Embora o autor citado sofra
críticas por sua visão de mundo, e para os muitos cientistas da sociedade ele não
tenha autoridade sobre o século XXI, Theodor Adorno pontua verdades semelhantes.
E não menos aterradoras.
Semelhantes porque o start da cultura de massas, que vivemos
hoje, se configurou melhor do século XIX pra cá. Tantos avanços de lá pra cá e
a miséria não muda.
Adorno concluiu que o mundo
inteiro é forçado a passar pela indústria cultural. Isso facilita a maior parte
da sociedade pensar na condição dos indigentes como fatalidade, se isentar de
responsabilidades, ou pensar qualquer coisa mais absurda. Isso sim é
assustador.
Basta os dirigentes de nosso
sistema econômico se interessarem por um absurdo. Uma pena que resgatar os
molambos e mendigos não seja uma loucura ou absurdo qualquer.
Aterradoras também, porque
hoje é mais fácil incutir absurdos. Para Adorno, a TV, o cinema e o rádio não
têm mais necessidade de serem considerados arte, pois, na verdade, esses meios
só servem para incutir a ideologia capitalista – aquela que não considera
absurdo alguém morrer como indigente.
Ele diz que esses meios de
comunicação se auto definem como indústrias, e que os rendimentos de seus
diretores‐gerais
tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos. Só que o
pior não pára ai. Assim como Hugo apontava que as condições de trabalho corroem
o ser humano, Adorno observa que o trabalhador, durante seu tempo livre, deve
se orientar pela unidade da produção.
Desse modo, para Adorno a
tarefa que cabia aos sujeitos foi tomada pela indústria. Que tarefa? Avaliar
esse mundo sem que o bolso seja a régua dos homens.
No entanto, a vida de cada
homem e mulher está nas embalagens. Infelizmente, os mendigos só catam. Todo o
esquema da vida é realizado pela indústria “como um primeiro serviço ao cliente”.
No mundo hoje os samaritanos
escassearam. O único bom-mocismo que encontramos se traveste da fome por
capital que move os países imperialistas. Enfim, não estão os mendigos parados
na vida. Todos nós estamos poucos passos da parada. Nada mais.
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