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segunda-feira, 24 de julho de 2023

O TECIDO DA VIDA













Como seria? Se cada dia novo fosse um novo fio que usamos pra tecer a história da vida, da vida pessoal a que cada um é dada, da história pessoal que se é vivida, e no final todo o tecido compusesse a roupa final que usaremos em nossa partida?

Com que cor nos vestiriam e qual o formato a vestimenta seria? O que pensariam dessa travessia, do modo em que partimos para a outra vi(d)a?

Que sensação teriam os enlutados ao ver o corpo nosso de ente deitado? Será se reparariam no look nosso, respeitando o traje do ser “enleitado”?

A resposta não é tão difícil pra quem olha exatamente para o fio tem. Pra quem assume o papel de tecer e não terceiriza a responsabilidade que tem. Seja na própria casa, na família e no cuidar dos filhos, seja no trabalho, com os clientes e com os amigos.

Não é sobre ficar bonito no tempo da própria morte. Não é sobre moda que vim falar. É mais sobre o tempo em que se vive agora e o que inda podemos fazer enquanto temos hora.  

O tempo é um grande fio, os meus atos são fios também. As escolhas que faço geram o tecido que ornamenta a vida aqui e além.

O passado que trago comigo reúne os fios que já fiz passar, por dentro da agulha, da máquina de costura, chamada de trabalho, de existir ou de co(n)fiar.

A forma que tenho me vestido no presente pode muito representar. Pode até representar um tempo de dor ou o tempo que for. Pode ser uma roupa que simbolize todo um tempo de amor ou todo um tempo paz.

Por exemplo, a roupa amarrotada – e às vezes rota – são situações que não queremos passar. Quer por medo, quer por vergonha, não queremos que nos vejam em tamanho azar. Queremos inclusive nos esconder achando que passa por si só o período do nosso penar.

Mas, se há algum azar mesmo é o de parar de costurar.

Tem gente que com pouco tecido inova a beleza e é capaz de brilhar. É capaz de lutar. Com pedra e pano, feito uma funda, houve fé que já pode derrubar. Derrubou não só a soberba, a afronta e o medo, mas todo um exército que num gigante ousou confiar.

Viver um tempo de pena pode ser a melhor cena para se recriar. Construir um futuro melhor com todos os fios que acertamos usar. E o acerto não vem sem erro, sem fios rompidos, sem agulhas quebradas, sem a falta de uma boa máquina na mão.

Eu preciso cozer com meus atos as 24 horas do meu dia a dia. Fazer do meu cotidiano uma tecitura com sabedoria. Modular a quem eu tenho dado mais e a quem não sabe me receber. Olhar bem para quem está do meu lado, por tanto tempo – mesmo eu ciente de não merecer.  

A vida é um longo texto em branco que muito faz sentido ao escurecer. Que recebe da beleza da noite todo o significado em cada amanhecer.

Não é à toa que tecido e texto são palavras de mesma etimologia. Desde sua origem, elas andam juntas e muito podem nos dar a conhecer. Fazer a gente saber o que não sabemos, e conhecer de gente que não conhecemos. Juntas fazem a gente vestir a vida com a roupa que temos, e dar sentido a tudo que dizemos.

A cor e a linha que eu tenho hoje podem me ajudar a responder também. Se estou esperando que costurem por mim ou que venham me dar a cor que não se tem.

Só na morte há o coletivo, vai ser o lugar onde vão me costurar. Dentro de um corpo gigante e maior, que a sociedade insiste em tecer e perdurar.   

Não faço aqui um elogio ao individualismo cego e inconsequente, mas um convite a reflexão. Até pra nascer houve a costura dos pais, mas pra haver Brasil, muita vez, rasgam o cidadão.


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Um comentário:

  1. Show de reflexão. MN e fez lembrar do Objecto Quase de José Saramago

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