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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

CONTO - Ponto final (Ana Maria Martins Barros)

Ponto final* (Ana Maria Martins Barros)


O reino encantado da castanha, do caucho e dos garimpos de diamantes, atraiu levas e levas de mulheres da vida para a região de Marabá, dando a esta terra um ar de subversão, com a formação de famosos cabarés, o que modificou a rotina e revolucionou os costumes e as relações familiares da pacata cidade, que giravam em torno do homem. Estes, por trás dos fartos bigodes escondiam uma fachada moralista com extremado apego a defesa da honra.
As prostitutas trajavam-se de ouro, um meio de vida que fez história em Marabá. A maior freguesia estava nos cabarés, onde as jovens mulheres atraídas pela magia e sedução do dinheiro fácil dos garimpos vinham de toda parte, especialmente da cidade de Imperatriz no Maranhão, que também acolhia as moças solteiras de Marabá que eram expulsas de casa.
Embora defendessem a virgindade como valor moral e princípio ético do poder patriarcal, os homens frequentavam os cabarés com visível assiduidade e muita elegância nos trajes como conjuntos de linho e adereços como chapéus de massa e cinturões combinando com os sapatos.
Por outro lado, as jovens marabaenses deviam se vestir e se comportar como freiras carmelitas, para não “ficarem faladas”. Caso viessem a perder a virgindade, dizia-se que a moça havia sido literalmente “ofendidas”.  O termo ofendida equivalia a grande desonra para um pai de família, já que neste caso, as chances da jovem se casar eram mínimas.
As prostitutas de Imperatriz chegavam nos barcos de linha soltando foguetes, nas proas dos barcos. Nas malas poucas roupas e muito encantamento pelos homens casados.Como vingança as mulheres casadas se referiam a elas com apelidos de gatos, raparigas, prostitutas, mulheres da vida ou putas. Não importava o nome, elas subvertiam a ordem, frequentavam os salões de beleza, tomavam banho nos rios com sabonete Fhebo e exibiam-se nas ruas com decotes extravagantes. Assim, elas seduziam e eram também seduzidas.
A permuta entre prostitutas do Pará e Maranhão parecia um acordo institucionalizado. Assim aconteceu com as três filhas do Sr. Moacir.    Primeiro foi Helena a mais velha que “caiu na boca do povo”, indo para o Maranhão. Depois Solange e por último, Verônica a mais nova. Dizem que as duas primeiras conseguiram se casar depois de muitos anos morando na cidade de Imperatriz, Verônica não teve a mesma sorte. Estabeleceu-se mesmo foi nos cabarés da cidade maranhense. Dizem que sempre ameaçava voltar um dia à Marabá para se vingar. Ela guardava certa mágoa de alguém que não se sabia ao certo quem era.
Osvaldina, a mãe das três moças, era mulher das prendas domésticas. Não saía de casa. Enquanto o marido vaidoso estava sempre com um meio riso no rosto. As filhas puxaram a ele, diziam. De profissão era joalheiro, o que o fazia estar sempre bem arrumado, de maleta de couro preta em punho e chapéu de massa acinzentado. Entrava livremente nos cabarés a qualquer hora do dia ou da noite, pois era comerciante, gabava-se ele.
Enquanto a esposa definhava aos poucos, consumida pelo desgosto, Moacir parecia cada dia mais jovem e bem cuidado, embora em idade, Osvaldina fosse muito mais nova que o marido, o que reforçava ainda mais a vaidade daquele homem convencido e mulherengo.
O cheiro forte do perfume de gardênia, marca registrada de Moacir, era velho conhecido, especialmente das mulheres da vida.
Esposas como Osvaldina, esmeravam-se para o marido se apresentar bem nos ambientes, já que a roupa do marido refletia o caráter da esposa (traída ou não). Assim, o cenário de um pequeno bordel incluía sempre um pai de família bem vestido dançando um bolero com uma prostituta completamente entregue ao desfrute.
Moacir costumava trajar calças brancas ou cáqui, de um linho ligeiramente mole e brilhoso, sapatos bem lustrados, que Osvaldina em pessoa fazia questão de cuidar. O chapéu de massa combinando com o cinto, caía-lhe muito bem com o conjunto de linho que ondulava de acordo com as orgias dos Cabarés da Chicona ou do Canela Fina.
A notícia do barco recém-chegado de Imperatriz com lindas “mulheres da vida”, naquela noite, espalhou-se como rastro de pólvora pela cidade. A insatisfação das mulheres era visível e contrastava com a animação dos homens que em vão tentavam disfarçar a inquietação.
Naquela noite especial Moacir caprichou no cheiro de gardênia. Lá chegando, mesmo com a pouca luz do cabaré percebeu os olhares de uma morena de uns vinte e poucos anos, que lhe encarava com notável interesse. Embora fosse matreira e sonsa e de olhar meio precavido, o homem fora atraído pela moça de tal forma que não resistindo, chamou a dona do bordel, revelando-lhe seu desejo e pagando-lhe generoso cachê adiantado, por uma noite com a estranha morena.
A dose de pinga com cravinho tomada na entrada lhe dera coragem e assim como a moça também lhe correspondesse aos olhares de longe, foram deslizando sorrateiramente da pouca luz da sala para a penumbra do quarto abafado e sem saída de emergência, onde se encontraram frente a frente Moacir e Verônica, depois de passados alguns anos.
Ao sentir tão de perto o cheiro de gardênia seu velho conhecido, um arrepio na espinha lhe alfinetou os labirintos da memória. A moça quase teve um ataque, mas o sentimento embebido em ódio foi mais forte, conseguindo assim mantê-la de pé embora a muito custo.
Meio embriagado, Moacir  fungava no ouvido de Verônica como fizera há alguns anos atrás e, sem nada perceber, o pai perguntava com voz melosa qual era o seu nome, enquanto Verônica fazia uma retrospectiva e mergulhava nos afagos doloridos da infância, onde dedos enfiados em lugares não permitidos, lhe roubando, pouco a pouco, a juventude nas noites mal dormidas, em que o seu algoz era o próprio pai. Tais pensamentos foram prolongando-lhe o desejo de vingança, foi quando num último alento sacou da bolsa uma pistola e, enxugando com as costas da mão uma lágrima,disparou a queima-roupa, dando fim aquela angústia que lhe corroía por dentro.
 Aquele som que aos seus ouvidos lhe pareceu o canto de uma ave agourenta, deu um ponto final naquela história de ódio e ressentimentos.




* Texto premiado na categoria Conto do 3º Prêmio Inglês de Sousa, realizado pela Academia de Letras do Sul e Sudeste do Pará (ALSSP), no ano de 2014 em Marabá. 

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