Ponto final* (Ana Maria Martins Barros)
O reino encantado da
castanha, do caucho e dos garimpos de diamantes, atraiu levas e levas de
mulheres da vida para a região de Marabá, dando a esta terra um ar de
subversão, com a formação de famosos cabarés, o que modificou a rotina e revolucionou
os costumes e as relações familiares da pacata cidade, que giravam em torno do
homem. Estes, por trás dos fartos bigodes escondiam uma fachada moralista com
extremado apego a defesa da honra.
As prostitutas trajavam-se
de ouro, um meio de vida que fez história em Marabá. A maior freguesia estava
nos cabarés, onde as jovens mulheres atraídas pela magia e sedução do dinheiro
fácil dos garimpos vinham de toda parte, especialmente da cidade de Imperatriz
no Maranhão, que também acolhia as moças solteiras de Marabá que eram expulsas
de casa.
Embora defendessem a
virgindade como valor moral e princípio ético do poder patriarcal, os homens frequentavam
os cabarés com visível assiduidade e muita elegância nos trajes como conjuntos
de linho e adereços como chapéus de massa e cinturões combinando com os sapatos.
Por outro lado, as jovens
marabaenses deviam se vestir e se comportar como freiras carmelitas, para não
“ficarem faladas”. Caso viessem a perder a virgindade, dizia-se que a moça
havia sido literalmente “ofendidas”. O
termo ofendida equivalia a grande desonra para um pai de família, já que neste
caso, as chances da jovem se casar eram mínimas.
As prostitutas de
Imperatriz chegavam nos barcos de linha soltando foguetes, nas proas dos
barcos. Nas malas poucas roupas e muito encantamento pelos homens casados.Como
vingança as mulheres casadas se referiam a elas com apelidos de gatos,
raparigas, prostitutas, mulheres da vida ou putas. Não importava o nome, elas
subvertiam a ordem, frequentavam os salões de beleza, tomavam banho nos rios
com sabonete Fhebo e exibiam-se nas ruas com decotes extravagantes. Assim, elas
seduziam e eram também seduzidas.
A permuta entre
prostitutas do Pará e Maranhão parecia um acordo institucionalizado. Assim aconteceu
com as três filhas do Sr. Moacir. Primeiro
foi Helena a mais velha que “caiu na boca do povo”, indo para o Maranhão.
Depois Solange e por último, Verônica a mais nova. Dizem que as duas primeiras
conseguiram se casar depois de muitos anos morando na cidade de Imperatriz, Verônica
não teve a mesma sorte. Estabeleceu-se mesmo foi nos cabarés da cidade
maranhense. Dizem que sempre ameaçava voltar um dia à Marabá para se vingar. Ela
guardava certa mágoa de alguém que não se sabia ao certo quem era.
Osvaldina, a mãe das três
moças, era mulher das prendas domésticas. Não saía de casa. Enquanto o marido
vaidoso estava sempre com um meio riso no rosto. As filhas puxaram a ele,
diziam. De profissão era joalheiro, o que o fazia estar sempre bem arrumado, de
maleta de couro preta em punho e chapéu de massa acinzentado. Entrava
livremente nos cabarés a qualquer hora do dia ou da noite, pois era
comerciante, gabava-se ele.
Enquanto a esposa
definhava aos poucos, consumida pelo desgosto, Moacir parecia cada dia mais
jovem e bem cuidado, embora em idade, Osvaldina fosse muito mais nova que o
marido, o que reforçava ainda mais a vaidade daquele homem convencido e
mulherengo.
O cheiro forte do perfume
de gardênia, marca registrada de Moacir, era velho conhecido, especialmente das
mulheres da vida.
Esposas como Osvaldina,
esmeravam-se para o marido se apresentar bem nos ambientes, já que a roupa do
marido refletia o caráter da esposa (traída ou não). Assim, o cenário de um
pequeno bordel incluía sempre um pai de família bem vestido dançando um bolero
com uma prostituta completamente entregue ao desfrute.
Moacir costumava trajar
calças brancas ou cáqui, de um linho ligeiramente mole e brilhoso, sapatos bem
lustrados, que Osvaldina em pessoa fazia questão de cuidar. O chapéu de massa
combinando com o cinto, caía-lhe muito bem com o conjunto de linho que ondulava
de acordo com as orgias dos Cabarés da Chicona ou do Canela Fina.
A notícia do barco
recém-chegado de Imperatriz com lindas “mulheres da vida”, naquela noite, espalhou-se
como rastro de pólvora pela cidade. A insatisfação das mulheres era visível e
contrastava com a animação dos homens que em vão tentavam disfarçar a
inquietação.
Naquela noite especial
Moacir caprichou no cheiro de gardênia. Lá chegando, mesmo com a pouca luz do
cabaré percebeu os olhares de uma morena de uns vinte e poucos anos, que lhe
encarava com notável interesse. Embora fosse matreira e sonsa e de olhar meio
precavido, o homem fora atraído pela moça de tal forma que não resistindo,
chamou a dona do bordel, revelando-lhe seu desejo e pagando-lhe generoso cachê
adiantado, por uma noite com a estranha morena.
A dose de pinga com
cravinho tomada na entrada lhe dera coragem e assim como a moça também lhe
correspondesse aos olhares de longe, foram deslizando sorrateiramente da pouca
luz da sala para a penumbra do quarto abafado e sem saída de emergência, onde se
encontraram frente a frente Moacir e Verônica, depois de passados alguns anos.
Ao sentir tão de perto o
cheiro de gardênia seu velho conhecido, um arrepio na espinha lhe alfinetou os
labirintos da memória. A moça quase teve um ataque, mas o sentimento embebido
em ódio foi mais forte, conseguindo assim mantê-la de pé embora a muito custo.
Meio embriagado, Moacir fungava no ouvido de Verônica como fizera há
alguns anos atrás e, sem nada perceber, o pai perguntava com voz melosa qual
era o seu nome, enquanto Verônica fazia uma retrospectiva e mergulhava nos
afagos doloridos da infância, onde dedos enfiados em lugares não permitidos,
lhe roubando, pouco a pouco, a juventude nas noites mal dormidas, em que o seu algoz
era o próprio pai. Tais pensamentos foram prolongando-lhe o desejo de vingança,
foi quando num último alento sacou da bolsa uma pistola e, enxugando com as
costas da mão uma lágrima,disparou a queima-roupa, dando fim aquela angústia
que lhe corroía por dentro.
Aquele som que aos seus ouvidos lhe pareceu o
canto de uma ave agourenta, deu um ponto final naquela história de ódio e
ressentimentos.
* Texto premiado na categoria Conto do 3º Prêmio Inglês de Sousa, realizado pela Academia de Letras do Sul e Sudeste do Pará (ALSSP), no ano de 2014 em Marabá.
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